segunda-feira, 21 de abril de 2014

renova

lanço luz sobre o tempo
revendo cenas.
hoje, sem temas, sem focos,
praticamente enxuta me convoco
nua, una
e de bom tamanho para adentrar
o novo abismo particular
[lucilastelles]

Tragicomeço

Meço 
Se mereço
Esse terço
Desta terçã
Amoleço
Desmaio
Mio
Desmiolada
Aconteço


[lucilastelles]

ano novo na roça

o vaga-lume 
piscou, acendeu
acocorado
no lustre apagado

lucilou, enfim, debochado
no meio do meu próprio breu

[lucilastelles]

aguardo

aguardo 
silenciar
o que não digo
o que não trago

(lucilastelles)

Guerrilheiro

Não tem coração de si
nem dó
não tem bem
nem quem
lhe roube o bem que bem tem.

Segue só
como ninguém
e sua alma
Só sua canção
o acalma
Só sua razão
o embala
Só seu sonho não cala

Só o todo lhe basta
cada um, cada qual lhe toca
– mais que o coração –
o corpo
de luta
que sangra
que não estanca
nunca

[lucilastelles]

sina insensata

Minha cara sua aura
Seu corpo meu fluxo
Meu corpo seu espasmo
Meu riso seu sarcasmo
Sua sanha minha manha
Meu mutismo sua prosódia
Minha mixórdia sua surdez
Seu choro meu carinho
Meu choro seu caminho

[lucilastelles]

zero


zero
é o valor
da minha dor
diante da foto
do fato
do menino
que mergulha
no lixo

[lucilastelles]

Sequela de feriadão

Da persiana banguela
me vem a briga, a flanela, a novela
Insolente e indiscreta janela
me joga outra vida
nas vistas
sem direito a apelação

[lucilastelles]

Sem mais para o momento

Verso difícil
Não me diz
Não me versa
Mudez só
Velo em silêncio o que morreu em mim
E não tem mais jeito
Volto à tona
E tontamente
Torno
Vivo
Sem mais

[lucilastelles]

Amor brusco

Lusco, fusco
tosco, cuspo.
Busco.
Susto.
Tasco, masco, 
lambo, mambo.
Sambo.
O que nos salva
É o movimento dos quadris

[lucilastelles]

Farmacopéia

Unha de gato
Pra dor de cotovelo
E desmantelo
Do coração
Pata de vaca
Pra noite não dormida
Alma mal querida
E comichão
Olho de boi
Pra falta de palavra
Língua solta e
Desrazão
Rabo de galo
Pra língua presa e
Muito excesso de noção
Boca de siri
É só pra espalhar
Que eu gosto é de ti

[lucilastelles]

Buscamento

Luz do delta, ritmo das águas
Sal dos manguezais
Senhor de marés e de guarás
Pensador de ventos e ondas
Dono de seres, sabores
Dos rios salgados
Mestre, remanso
Fazei-me instrumento

[lucilastelles]

certas coisas

amo certas coisas
outras não
tão certas
se amo o certo
o errado me aparece
tão certinho de tão torto
que aí, sim,
me parece que acerto
e saio andando por aí
de mãos dadas
ou emprestadas

[lucilastelles]

Fotofabrico

foco
desfoco
frente
fundo
foco
desfoco
e feito louco
desloco os fatos
descolo aos tufos
o que há
e o que falto
salto todo fato
e pouco efeito isso faz
em mim.

[lucilastelles]

bala no olho

bala no olho
do filho sem
nome do pai.
é refresco.

[lucilastelles]

O povo viu a uva

O povo viu a uva
O lobo viu a luva
O novo vem na chuva
Na curva
Na vulva
Não turva essa palavra
Que é larva
E não cova

[lucilastelles]

Descubro

Descubro de bruços que
Busco meu contrário
Contrario-me
Me rio do que tranco, do que tombo, do que manco
Remando contra
Remendo meu soneto
E só.
Enfim só.

[lucilastelles]

Plágio enjoado

ensaio
escrever
um poema
vem o verso
e Leminski

[lucilastelles]

O som, o seu som

                      para o Lourenço
O seu som nos soa
e grave ressoa            
bom em nós.
Tempo contratempo
passo compasso.
Impassível, sutil,
um sábio em sintonia.
Preciosa sonoridade
essa que soa de você,
desde cedo um clássico,
como se eu sempre soubesse.
E sei:
o que você toca é tanto o que você sabe que
o que você toca é tanto...

[lucilastelles]

Mitologia fétida

a fé
e a ira
juntaram-se.
jantaram-se.
nasceu-lhes
a feiúra.
Que nos estarrece de templos em templos.

[lucilastelles]

Quando me vejo

Quando me vejo em pedaços
Me solto
Voo
E volto

Aí me pego de assalto
Canto alto
E me vejo
Inventando passos

[lucilastelles]

Querência

Viver grandes mentiras,
mas vivê-las com vontade.
Aquelas mentiras certas,
do tipo de pernas curtas,
de tão boas e à-toas,
que dispensam realidade.
Antes isso que aquilo,
aquele preceito tolo,
de viver certas verdades.

[lucilastelles] 

Quem diz que eu dou conta

Quem diz que eu dou conta?
Se sou contra
Se meu centro eu não encontro
Se todo canto pra mim é tanto
Se é da sua conta
sim
sou tonta
mas
nem tento

[lucilastelles]

Amanhecer

Acordo
teu corpo deitado ao meu lado
de bruços:
as costas largas, morenas, os cabelos brancos.
Fico olhando ainda algum tempo
para esse forte e pacífico contraste que me estremeceu.
Você abre os olhos e me olha doce,
como se nada tivesse acontecido.

[lucilastelles]

Lágrima

Choro brando quase grave
Amor que não me leve
Dor que não me eleve
Paz que não me breve

Choro breve quase leve
Amor que não me grave
Dor que não me agrave
Paz que não me eleve

Choro manso quase breve
Amor que não me deve
Dor que não me leve
Paz que não me teve

[lucilastelles]

O jardineiro

Esse ser improvável
de cores, texturas, combustão
que vê os seres e não seres
(sabendo que todas as cousas têm existência)
que seus olhos e mãos
revelam ainda o que é ausência.
Homem-luz, que nem sabe, que se enrosca no breu.
Nem sabe que se enroscou onde sei eu.

[lucilastelles]

Escape

na hora silenciosa da noite
o caminhão passa
na rua da cidade
do nada
ela sorri de lado
o afago do ronco arranhado
viagem voo brevidade
fugacidade

[lucilastelles]

Poesia tardia


Poetas me olhavam de esguelha
Cabreira, eu roçava 
Mas saía
Até me chegar alguém
a respirar poesia.
Inspirava, conspirava
a cada dia.
Lírica, dramática, visceral.
Poesia então me entrou
Como um homem.

[lucilastelles]

O que me move é a dor que não se vê

O que me move é a dor que não se vê, a dor de que não se fala,
a dor que não tem voz, anônima e insuportável
a dor de não ter sua dor revelada, de não fazer jus a dor relevante
a indignação, o desespero na face de cada um que se recusa a compreender que o senso comum não entende ser justa sua dor.
O que me move é me imaginar mendiga, indigente, ladra, bandida, puta, traficante, terrorista, mulher-bomba, suicida.

[e sempre penso nesta música do Chico]

Notícia de jornal
(Chico Buarque)

Tentou contra a existência
Num humilde barracão
Joana de tal, por causa de um tal João

Depois de medicada
Retirou-se pro seu lar
Aí a notícia carece de exatidão

O lar não mais existe
Ninguém volta ao que acabou
Joana é mais uma mulata triste que errou

Errou na dose
Errou no amor
Joana errou de João
Ninguém notou
Ninguém morou na dor que era o seu mal

A dor da gente não sai no jornal

Insone

Sem me entender
me render
tampouco me socorrer
procuro sem querer te achar
– insistentemente.

A pele eriça.
Vestígios, fotos
nossas palavras
sua voz, lugares, sons
as cores
cheiros, olhares
tatos, nossos tratos
nossos fluidos.

Meus olhos d’água, cheios desse rio, desse mar.
Esse mundo líquido, tépido, comovente
tão movente
em que me lancei de cabeça um dia
e outro dia, e outro, e outro...

Eu fui inteira
e nos perdi
pelos caminhos, descaminhos,
atalhos mal recortados,
rasgos grotescos nas nossas carnes.
Dói.
A ligeira impressão de que tendo sido tudo
nunca foi tanto.

[lucilastelles]

Você se parece

você se parece com um rio
carregado de cachoeiras e corredeiras.
profundo e negro.
misterioso.
silêncio ruidoso. rugido surdo.
inquieto. incessante.
caudaloso rio
capaz de cabeças d’água, devorar as margens, os barcos, os homens, os seres.
capaz de acolher, se oferecer em praias claras e cálidas.
Brinco com seu burburinho e me lanço de cabeça.

[lucilastelles]